Ilegítima


De regresso ao blog, sinto-me como regressada à Ilha Lilás, como a filha ilegítima que sou, por natureza. Ilegítima nos sítios, ilegítima dos sítios. De regresso, após uma passagem de um tempo saudoso por Lisboa, a minha cidade legitima, mas onde, também aí, me tornei uma ilegítima. E porque decidi ser ilegítima na Ilha Lilás, volto, também, aos temporais. Hoje é a Elsa, depois será qualquer coisa outra começada por F e assim sucessivamente. Não importa. Na minha ilegitimidade, consagrada na minha Certidão de Nascimento de 1959, começo, aos 60 anos, a gostar de não ser legítima de coisa alguma. Como uma condição, jamais envergonhada, mas antes até gloriosa, de ser quem sou.
A Ilha Lilás, esta ilha para onde me mudei há ano e meio, abastarda-me de uma maneira, que nem a minha ilegítima iligitimidade alguma vez o conseguiu. É como se ela me dissesse: "goza lá o teu olhar, aproveita a minha loucura, tira lá os teus azimutes à insularidade, que jamais me pertencerás, faças lá tu o que fizeres, ó ilegítima!"
Fui a Lisboa, ao fim de quase ano e meio distante da minha origem. Da minha ilegitimidade legítima. E continuei a sentir-me mais legítima ali, mais pertença minha, mais indignada ali, do que aqui. Mais eu ali, do que aqui. Com mais direitos. Mas um amigo, não lisboeta, confrontou-me, quando lhe falei da indignidade em que Lisboa se transformou no escasso tempo da minha ausência, para me apontar o dedo: "E então, como é, seres uma lisboeta que foge para outra cidade?" E doeu. Doeu a minha cidade estar como está, e doeu, na verdade, o facto de, realmente, de algum modo, ele ter razão. Afinal? Em que fico eu? Numa cidade que me pertence, mesmo, mais do que qualquer outra, ou na minha fuga constante, desde que entrei o meu meio século? E como fujo eu para outras cidades tão ingratas? Será porque a ingratidão das cidades alheias me magoa menos do que a da minha cidade? Provavelmente.
A Ilha Lilás é de uma beleza esmagadora. Consegue fazer-me esquecer a sumptuosa baía de Luanda e, principalmente, o Meu Tejo, ou, como diria o poeta, "O rio da minha aldeia"... Mas não me torna legítima. Não mo permite. Muito antes pelo contrário. Faz de mim a ilegítima permanente.
Sem o carinho com que a minha mãe me explicou, a propósito da minha ilegitimidade salazarista, que "isso não importa, filha, porque os filhos são sempre legítimos para as suas mães!"

https://youtu.be/hLhN__oEHaw


A Bola

Comprar jornais do dia, aqui em Angra, tem muito que se lhe diga. Há uma "rede" de tabacarias, geralmente com especial afluência em dias de euromihões, totoloto, placard... e raspadinhas. Mas também há jornais e revistas: do Continente e da ilha. Os jornais de S. Miguel (Ponta Delgada), como o famoso Açoreano Oriental, por exemplo, não chegam aqui. Portanto, se queremos comprar um jornal lá do Continente, temos de ter a paciência de que se faz a vida do insular.
Quero eu com tudo isto explicar que os jornais viajam na Tap. A Sata não faz esse serviço: nem inter-ilhas, nem da longínqua Lisboa para cá. Portanto, se queremos ler um jornal do dia, dependemos do dia. Ou seja, se for daqueles em que a Tap vem cedinho, estamos com sorte: às duas da tarde eles batem na Tabacaria central. Se o voo for mais tardio, ou houver atraso, podemos aguardar, com a tal da paciência a que aqui nos habituamos, a eventual possibilidade de ler A Bola, dois dias depois do jogo ter acontecido.
Felizmente, à segunda, a Tap vem cedo. De forma que hoje, doidos por ler A Bola depois da goleada de ontem, o Francisco foi a correr à Tabacaria (assim mesmo chamada), por volta do meio-dia, para lhe guardarem uma, com a esperança de às duas da tarde já lá estar, não havendo atraso, é claro.
Quando voltou, meio enervado, disse-me: "Ainda bem que lá fui agora, que já têm uma data deles reservados". À uma da tarde, sem conseguir largar a ansiedade de ler o jornal, perguntou, em jeito de piada: "Ainda não são duas, pois não?" 
Depois de almoço, lá foi, em pulgas, naquela lógica de a procura de A Bola poder ser tanta, que vendessem o nosso exemplar a um amigo mais antigo. Nunca se sabe... De forma que, à saída, perguntou-me: "Queres que passe por casa, para veres a capa?". A capa? A CAPA? A capa já eu tinha visto, logo pela manhã. Eu queria era ler A Bola impressa, que a on-line é uma treta, mal escrita e mal amanhada, meio vergonhosa, mesmo, para aquele que foi o jornal, então trissemanário, com o qual o meu filho mais velho treinou a sua leitura escolar, desde os sete anos de idade, por ser escrupulosamente bem escrito. Eu queria era lê-la todinha!
Quando aqui chegou, dez minutos depois, para me entregar A Bola, a primeira coisa que fiz, quase esfomeada, foi cheirá-la. Cheirei-a demoradamente, a sentir-lhe a tinta ainda fresca, o papel recém-saído da bobina, a rotativa na minha imaginação....E só depois olhei a capa da matéria, nas minhas mãos, e voltei a cheirar, quase a tremer de saudades, num esforço para, antes de a devorar, lhe fotografar a capa, a nossa capa, assim mesmo como aqui é vendida, com o preço acrescentado a lápis, com o nome do Francisco marcado da "reserva", e depois respirar fundo. 
Por fim, sentei-me, a tentar acomodar-me o mais confortavelmente possível, e foi então que passei à página 2, aquela tal primeira par do miolo. E é quando espero um relato trivial, que me deparo com uma escrita fluida e inesperada. Olho, então, só então, para a assinatura  do texto: António Simões. E prossigo. Continuo, surpreendida, a ler uma prosa que me comove, por me trazer de volta o Carlos Pinhão, esse jornalista notável, de escrita limpa e lúcida, de genialidade e generosidade, esse homem senhor, essa pessoa extraordinária, esse jornalista de eloquência inesquecível, esse tão saudoso camarada. E fico parada no tempo, a lembrar o Carlos Pinhão, na linha seguida, atrás de um texto dele, antigo, tão antigo quanto uns outros 10 golos. Quando Pinhão escreveu: "Aquilo não foi um desafio, foi 10 a fio..." 
O texto de abertura de hoje d'A Bola (lido e fotografado HOJE! abençoada Tap, que pelo menos neste dia me trouxeste o Benfica a tempo e horas...) é, também, uma vénia ao excelente jornalismo de que era feita A Bola. O jornal mais lido em Portugal durante muitas décadas. O único que não vivia da publicidade, por as vendas (à segunda-feira, depois de um Benfica-Sporting, a tiragem chegava aos 200 mil) o pagarem a si mesmo. Que tinha 17 jornalistas fenomenais e no qual meter um anúncio mínimo de uma coluna só era possível com "boas" cunhas. Um duplo-tablóide que resistiu ao fascismo, ao formato e aos continuados, enquanto teve forças para tal, e que o meu filho mais velho lia estendido no chão da sala, de fio a pavio, em silêncio e com deleite. 
Hoje, A Bola chegou a horas razoáveis. E trazia o Carlos Pinhão lá dentro. Trazia jornalismo de primeira água, portanto. Trazia a memória da nata da nata. Do tempo em que ser jornalista era uma aventura honesta, limpa, sem rasteiras, e sabia bem ler jornais. Mesmo quando o Benfica não ganhava por 10-0!
Há dias em que nos sentimos gratos por perceber que há quem recuse o esquecimento!


Intensidade


No final de Outubro, fomos visitados por dois casais de amigos. Uma das mulheres, a Teresa, perguntou-me: "Como é que vocês saem de Lisboa e vêm viver para aqui? Não é um pouco..." A pergunta foi natural, de alguém que quer entender o porquê e se imagina a si mesma em semelhante situação, de forma que lhe completei a frase: "Assustador? Por estarmos numa pequena ilha bem no meio do Atlântico?" Ela abriu os olhos, curiosa, e disse que sim, era isso. E eu fui-me espraiando. "Estarmos aqui, assim, no meio dos elementos, numa ilha bem no centro do Atlântico e, ainda para mais, entre três falhas sísmicas. Faz confusão, não é?" Ela anuiu, com um olhar entre o perplexo e o querer muito entender, tendo em conta o que seria para ela. Confessei-lhe que, no início de aqui estarmos, de mudança feita e opção assumida, tínhamos falado muitas vezes sobre isso, os dois. Mas já há um tempo que desistíramos de o fazer. Que se tornara normal. Estamos a gostar de viver aqui, assim mesmo, entre o céu e a terra, entre três falhas sísmicas, entregues aos ditames da Natureza, insulares. Penso, agora, o que ainda não tinha clarificado para mim mesma: no fundo, ambos gostamos da surpresa que cada dia nos proporciona, sempre diferente do anterior, dessa novidade quotidianamente inesperada, da enorme intensidade de que se reveste o viver aqui. Só pode ser por isso: a intensidade.
Neste primeiro Outono, estamos a aprender a conviver com a sinceridade da Natureza. E é muito empolgante. Já nos tinham dito várias coisas. Um amigo, nascido e criado  aqui, garantira-me, perante algumas interrogações minhas, que de Inverno, "às vezes, é mesmo muito assustador". Uma amiga, que aqui viveu sete anos e se apaixonou pelo arquipélago, esclareceu-me, mais de uma vez, sempre com um sorriso na voz, penso que pela memória grata, que "quando há temporal cai tudo". "Mas tudo, como?", perguntei. "Tudo! Cai tudo. Tudo mesmo: telhas, árvores, sinais de trânsito, sei lá, cai tudo!"
Ontem, vivemos um novo entusiasmo: a chegada da Diana! 
Primeiro, pela madrugada, e sem pedir licença, chegaram as intensas rajadas diabólicas. O habitual mar dócil encorpou-se, elevou-se, revoltou-se, rugiu, perdeu o brilho e adquiriu uma cor pastosamente original. O vento, cheio de poeiras, produziu uma espécie de neblina acinzentada por toda a cidade, deixando as imensas vidraças como se não vissem água há decénios. As árvores perderam os seus luminosos verdes e outonais castanhos, para se tornarem uma mancha cinzenta e fosca. O olhar desacomodou-se, os barcos atracados pareceram enlouquecidos, as escolas não abriram, as folhas dos plátanos, de tamanhos os mais variados, voaram no alto céu, assemelhando-se a bandos de pássaros apressados, o horizonte encolerizou-se. 
A meio da tarde, o vento rodou desnorteado e, com a noite, amainou o sopro, para dar lugar às chuvas copiosas e relampejantes, durante horas a fio, como um imperativo inadiável, uma lavagem primordial, uma emergência desesperada.
Eram 8 horas da manhã quando, por fim, o dia realmente despertou, numa cidade satisfeita e tranquila, novamente transparente e cálida. ondulação abrandou, alguns barcos afoitaram-se, o mar recuperou o verde cristalino, o sol aqueceu-nos o rosto, o corpo e a existência. Voltou o som das gargalhadas das crianças.
Como se, de repente, toda a vida se refizesse. Como se a véspera apenas tivesse existido para hoje nos sentirmos especiais e felizes. Como um renascimento. Como um arfar de alegria. Como uma merecida recompensa. Como uma magia.
Guiomar Belo Marques©



O Mercado


Gosto de mercados, feiras e padiolas. Gosto de me passear por entre as bancas de tralhas, legumes, cheirinhos e caracóis, peixarias, talhos, floristas e recantos de cafezinho com bolos secos. Gosto da vida dos mercados desde garotinha, quando acompanhava a minha avó nas suas idas ao de Campo de Ourique. Conheço quase todos os mercados de Lisboa, escrevi sobre eles, fiz programas de rádio sobre eles, frequento-os com o prazer e frenesim da memória olfactiva e colorida da infância.
Tenho a sorte de viver perto do Duque de Bragança, a Praça de Angra do Heroísmo. Quando lá entrei pela primeira vez, recém-chegada de Lisboa, entristeci-me. A clientela é fraca e, segundo o Hélder — o meu abastecedor de batatas, cebolas, cenouras de aspectos originais, alhos pequenitos e maiores, couves de chorar por mais, nabinhos (nabiças, para lisboeta), que se desfazem na boca, salsa (coentros raramente, que ele não gosta deste cheirinho) — "aqui as pessoas preferem ir ao hipermercado, do que vir ao Mercado. Até temos vergonha quando os turistas andam por aí...  E a Câmara ainda deixou abrir mais um supermercado aqui ao pé. Isto é mesmo para acabar connosco!"
No mercado, onde vou quase quotidianamente, os vendedores conversam uns com os outros, em sistema de tristeza. A clientela é pouca. Principalmente agora, quando os elementos andam mais enfurecidos, o vento prejudica a faina e a agricultura, mais a chuva e outras adversidades desta vida de ilhéu sem costa firme por perto. Só as ilhas, entreajudando-se nos ventos e marés, na fustigada Atlântida, bem no meio de três falhas sísmicas, conseguem amparar-se umas às outras. E dia em que as peixarias não têm peixe, são dias de vazio para todos.
O Hélder explica-me tudo e pergunta-me pelo tempo. Já sabe que sou cliente assídua dos sites meteorológicos. Que pela manhãzinha, antes de ir ao mercado, verifico as inclemências, ou não, dos dias que se aproximam, e logo lhe digo se vai haver temporal, vento e chuva, ou sol e bonança. Mas ele sabe. Sabem todos muito bem. Estão constantemente a refilar pelo tempo, mas vivem aqui desde sempre. E eu também, que sei que eles sabem, vou esticando a conversa. E perguntando e aprendendo. Vou sabendo, por exemplo, que a bela cebola, "agora só lá para a Primavera". E então? Como vou fazer, Hélder? "Vai ter de comer a de estufa, mas a que aqui tenho é de S. Miguel, que quando me fornecem a do Continente, ela vem atada de outra maneira: vêm os sacos todos cozidos em cima, está a perceber?". 
Não importa. Os alhos continuam bons e frescos. É ele que os semeia, embora com sementes da Graciosa. E eu vou levando umas cabeças pequeninas, que ele lá tem numa caixa, e que todos os dias me oferece, porque "como é que lhe vou cobrar esses alhos já pouco cheios?" "Alhos chochos", digo-lhe a sorrir, enquanto explico que é assim que lhes chamamos no Continente, e por isso até dizemos que quando uma pessoa também é meio vazia da cabeça é um "cabeça de alho chocho", e o Hélder ri. Acha-me piada, que fico ali uns minutos valentes a conversar com ele, quase sem clientes, mas com as melhores batatas da Terceira, que também, antes de virem as novas, lhe fui levando, tentando comprar, mas que ele me foi dando e dizendo: "só as tenho ainda aí porque a senhora as leva, porque já ninguém as quer...". E eu insisto em pagar, e ele regateia ao contrário, porque tem o seu brio.
Na sexta-feira passada, anunciou-me: "Lá para segunda-feira, conto já trazer batata nova. Nova mesmo! Não é como a da banca aqui do vizinho de trás, que pôs um letreiro a dizer batata nova, a 1€, como se fosse possível, nesta altura, haver batata nova a esse preço. Fui até lá e perguntei-lhe: então? vendes batata nova a 1€? Tu lavaste, mas foi, a batata. puseste-a branquinha e agora andas a enganar os clientes. A minha não, quando a trouxer, é mesmo nova. Eu, o que vendo aqui, é o que consumo em minha casa. Não é como um outro, que tem uma hortinha para ele e depois a horta grande é para vender, que fui lá um dia e ia apanhar-lhe na horta grande e ele disse-me que aquilo era para vender, para consumirmos, tenho ali a minha hortinha". 
Assim é o Hélder. Um agricultor que tem a sua banca de cenouras estranhas mas deliciosas, me oferece aquilo que lhe parece justo e me cobra barato todos os seus prazenteiros produtos hortícolas. E ainda me ensina muito e me dá muitas informações sobre a ilha e as suas gentes, ao mesmo tempo que me faz perguntas sobre coisas do Continente, e me vai reafirmando que há pessoas que são pessoas, há outras que são mais ou menos e algumas ainda piores, que não prestam mesmo. E lá me dá uma série de exemplos, com casos concretos, para no fim me perguntar: "Então a senhora acha isto decente?", todo indignado, para logo a seguir dizer uma ironia a propósito, e desatarmos os dois a rir.
Quando vou à banca dele e ele não está, vou pondo aquilo que quero no saco e logo aparece a "vizinha", como ele designa a senhora de 80 anos e belos cabelos brancos, que tem banca ao lado da dele. Vem dizer-me que ele a encarregou de tomar conta das coisas, mas só pesa na balança dela, que com a dele não se entende. E eu lá vou até à balança dela, comprando-lhe tomate e alfaces, que são boas, e, claro, o Hélder não vende. Então ela faz as suas contas, as dele e as dela, e eu pago. Da última vez, diz-me o Hélder quando lá volto: "A senhora há dois dias esteve aqui e eu não estava, não foi?" "Sim, Hélder, mas levei e paguei na Vizinha". "Pois", diz ele. "Quero pedir-lhe desculpa, porque ela cobrou-lhe as batatas, que eu só ainda não mandei fora porque a senhora gosta delas e as leva, porque já nem as devia ter aqui..."
Assim é o Hélder, que nesta segunda-feira tinha batata nova. Quando cheguei, exultei: "Isto é que são boas notícias, Hélder!" Sorriu, percebendo, mas fingindo que não. "Então?" "As batatas, Hélder! As batatas novas!", disse-lhe, alegre, recebendo de retorno um sorriso orgulhoso do meu informador agrícola, companheiro de conversas triviais, fornecedor dos produtos da terra com que nos rebolamos de prazer à mesa, felizes pela recuperação dos sabores antigos, reencontrados em Angola e agora reglorificados. 
Sabe tão bem viver aqui!
Guiomar Belo Marques©

Trumparias


Pouco depois de tomar posse, Donald Trump aflorou a possibilidade de a ilha Terceira dever pertencer aos EUA, por usufruto campeão. A coisa passou e morreu na estupidez. Aparentemente.
No passado dia 7 de Abril, na sequência de um suposto ataque com armas químicas contra a cidade de Duma, na Síria, Trump ameaçou retaliar. Dia 10, estamos na marina de Praia da Vitória, que para quem não conhece esclareço que é por onde entra toda a aviação para aterrar nas Lajes, civil ou militar (porque as pistas são paralelas, mas não exactamente comuns), quando começamos a ouvir um som ensurdecedor de aviões. Olhamos para cima e vemos caças bombardeiros a entrar aos pares, com os respectivos caças de abastecimento, surpreendidos, porque são ultra-rápidos e tão barulhentos, que chegam a ser verdadeiramente assustadores, mesmo quando sabemos que não vão despejar uma bomba em cima de nós, quanto mais, imaginei eu, a sobrevoarem crianças em terreno de guerra. Depois, foi assim o dia todo. Após a segunda "leva", comentei com o Francisco que o Trump ia mesmo atacar a Síria. Ele achou que eu estava a ver coisas, porque não fazia sentido nenhum ele vir por este caminho. Ao fim do dia, começou a achar que, de facto, já era aviação militar a mais e, enfim, talvez eu tivesse razão, quando lhe disse que todos os ataques norte-americanos passam pelas Lajes. E assim foi, de facto. Estava certa.
Em Angra do Heroísmo, não se ouvem nem vêem os aviões, sejam civis ou militares, a não ser mesmo muito excepcionalmente. Mas em Praia da Vitória, que ganhou o nome de Vitória por ter lutado pelo Liberalismo, as coisas são diferentes. Ali, as pessoas vivem as Lajes desde que os norte-americanos aproveitaram a boleia dos ingleses, durante a II Guerra, para aqui se instalarem. 
Quero eu com tudo isto dizer que a Terceira tem muito que se lhe diga. E as Lajes, as dos norte-americanos, que se foram, mas não totalmente, são uma plataforma estratégica no meio do Atlântico. Hei-de falar mais sobre esta questão, que não é de somenos, porque por aqui foram donos e senhores os militares dos EUA durante demasiado tempo, com Portugal a fingir que não era nada connosco. Mas é! Os Açores não podem ser olhados apenas como o arquipélago que faz de Portugal um país com uma zona marítima imensa. Os Açores são muito mais do que isso. E a ilha Terceira, aquela para onde decidi vir viver, onde em tempos se localizou a capital do Império, onde as bravas gentes resistiram aos filipes, onde D. Pedro se sentiu em casa, tem também uma história surda que é importante deixar de ignorar.
Uma jovem britânica, um pouco confusa com todas as notícias distorcidas que lê no seu país Brexit, e crente na boa vontade dos norte-americanos, disse-me em Julho que a guerra nuclear estava iminente, porque os russos são uma ameaça e os EUA, aos quais a Grã-Bretanha deve muito, mesmo com o Trump, que tendo coisas más tem também coisas muito boas, iam ter de retaliar. Filha da Guerra Fria, disse-lhe que essa coisa da guerra nuclear não ia ser tão possível assim e que ela se acalmasse quanto aos russos, que o Muro já caiu antes dela nascer. 
Quando o Trump declarou, esta semana, que o acordo assinado por Gorbachov e Ronald Reagan, em 1987, estava anulado, pensei naquilo que me era inimaginável e de que a menina britânica me falara. Só que, ao contrário do que ela afirmara com convicção, o problema não são os russos, mas sim os EUA. Só que, na Inglaterra de 2018, como em muitas partes do mundo, "o perigo russo" continua a ser "o perigo vermelho", o que, se não revelasse uma ignorância tremenda até dava para rir. Mas não dá! 
A ignorância é amiga dos ditadores. Manter as pessoas acéfalas, permite a manipulação. Alimentar uns terrores, normalmente inexistentes, ajuda a desbravar o objectivo de quem não gosta da democracia e muito menos da liberdade. 
Espero, muito sinceramente, que a Amazónia continue a ser a Amazónia. Porque a Terra precisa de respirar. E espero, também, não ter escolhido uma ilha, pela qual nos apaixonamos facilmente, porque é bela e tem gentes com bravura, que se torne a plataforma do inferno do Mundo. 
Hoje não estou para brincadeiras, que o caso é mesmo muito sério. 
Guiomar Belo Marques©



A Atlântida 


Oh, os Açores! 
Abaixo da linha de água e à sua superfície. 
Um manancial de vida, cuja urgência de preservação tem merecido a atenção da Fundação Oceano Azul.
Nem imaginam a quantidade de plásticos que sempre apanhamos quando saímos de barco (redes de pesca, garrafas, sacos, foguetes, e até, imagine-se, contentores do lixo, entre muitos outros materiais) e que andam a vogar nas águas do arquipélago. 
Os visitantes vêm à procura de baleias e golfinhos. Para mim, são principalmente os golfinhos que trazem a magia. Quando nos rodeiam, é sempre como se a sorte estivesse do nosso lado, como se nesse dia ganhássemos de mão beijada a felicidade, como se fossem o privilégio com que a Natureza nos eterniza o momento, como se nesse dia nada de desagradável pudesse destronar-nos. São tão belos, tão amistosos e afáveis, tão elegantes, tão engraçados, tão cheios do bom e do belo. Tão, mas tão auspiciosos.
Mas, à superfície, também podemos ver, entre muitas outras espécies, a tartaruga amarela, verdadeiramente venerada pelas gentes da ilha, que quando lhes detectam sujidades as apanham para as limpar, com carinho e enlevo, e depois as devolvem ao oceano, com delicadeza. 
É sobre a riqueza destas águas, sobre esta Natureza tão gratificante e especial que hoje vos proponho ganharem vinte minutos da vossa vida. Vendo o vídeo. Vale a pena!
Guiomar Belo Marques©


Doc ► Expedição [ Açores ] - YouTube

Vasco da Gama


Vá-se lá saber por que razão, as pessoas gostam de se fazer fotografar ao lado de celebridades. De forma que, à semelhança do que se passa com o Fernando Pessoa, na Brasileira do Chiado, também em Angra do Heroísmo não há bicho careta que não queira ficar para a posteridade ao lado do Vasco da Gama. 
Até que se compreende. Esculpido pelo norte-americano Duker Bower e oferecido à cidade pelo emigrante terceirense Victor Baptista (o mesmo que deu a estátua do Eusébio ao Estádio da Luz), o navegador é irresistível. Em passo determinado e directamente vindo do mar, rasga a calçada portuguesa e avança pelo Pátio da Alfândega, sobre versos dos poetas que glorificaram a bravura das naus e os feitos heróicos dos nossos marinheiros. 
Em 1499, quando regressava da primeira viagem à Índia recheado das especiarias que marcariam para sempre a condimentada gastronomia terceirense, fez um pequeno desvio ao rumo para aqui desembarcar, preocupado com o estado de saúde do seu irmão Paulo, que acabaria por morrer de tuberculose e aqui ficar sepultado. Talvez por essa razão, decidiu o artista talhar-lhe uma cara de poucos amigos. Ou, quem sabe, devido ao peso da responsabilidade de inaugurar um caminho marítimo tramado.
A verdade é que, desde o dia 10 de Junho de 2016, quando ali o plantaram, o desgraçado tem aguentado estoicamente as macacadas dos passeantes, que se agarram ao homem como se de um familiar próximo se tratasse. Mas não só. Sempre que os alegres angrenses decidem realizar uma festarola, lá se instalam as barracas de comes e bebes, com mesas compridas de madeira para a malta abancar a comer, e lá fica o pobre Vasco envolto na euforia alheia, com o molho das patuscadas a salpicar-lhe as barbas. 
Até eu, confesso, procuro sempre aquela mesa mesmo encostada ao sujeito, para entre uma e outra garfada ir conversando com ele. Gosto dele. Pronto, já disse. Por isso, em vez de fazer uma selfie ao seu lado, cumprimento-o sempre que nos cruzamos e passo-lhe a mão pelo ombro, com todo o carinho e respeito que ele me merece. Tal e qual os bêbedos fazem, durante as suas longas palestras e diálogos, faça chuva ou faça sol. Só que no meu caso é mais grave, porque faço o mesmo, mas sóbria. 
O problema é que tenho sempre na minha cabeça uma batelada de perguntas que gostava de lhe fazer e isso está a tornar-se uma enorme inquietação para mim.
Um dia destes encho-me de coragem e peço-lhe uma entrevista. 
Guiomar Belo Marques©







Os terceirenses


Dizem no arquipélago que a Terceira é a ilha sempre em festa. E é verdade. Os terceirenses resolvem a sua insularidade com alegria e tranquilidade. Andam de festa em festa, não apenas na ilha mas também nas demais, principalmente do Grupo Central. Uma festividade no Pico ou em S.Jorge é sempre alegrada por uma quantidade considerável de terceirenses. E quando não há razão aparente para celebrar, eles inventam. 
Esta alegria, que vai ajudando os pouco mais de 50 mil habitantes da pequena ilha a sentirem-se unidos e contentes, é contagiante. 
A paisagem, por vezes agreste e até assustadora, também ajuda. Raul Brandão chamou-lhe a ilha Lilás. Entre o céu, o mar e a terra, entre as nuvens que se acotovelam e a profusão de arco-íris completos e simutâneos, nunca há dois momentos iguais.
Apreciadores de música e touradas à corda, orgulham-se da sua resistência aos espanhóis e de terem sido o último pedaço de Portugal onde os filipes conseguiram entrar, com batalhas épicas nas enseadas da ilha. Com sobranceria, sorriem ao explicar que, das muitas fortificações existentes, a de São João Baptista, construída pelos espanhóis, é a única que está voltada para terra. 
Os angrenses, em especial, são orgulhosos da sua cidade, classificada como Património Mundial pela UNESCO, e do seu desempenho durante a guerra civil, cujo forte apoio aos liberais lhes valeu a designação de "Heroísmo" e lhes deixou a tolerância como um traço de personalidade.
Aos continentais, não perdoam o "tique" comum de facilmente se referirem ao Continente como "Portugal", o país a que gostam de pertencer, apesar do esquecimento e abandono a que foram vetados durante tempo de mais. Não é, por isso, de estranhar, que perante os que de lá chegam exista desconfiança e até alguma má vontade. Algo de desconfortável para quem decidiu viver aqui pelo simples facto de se ter apaixonado por esta ilha, cujas loucas gentes são capazes de azedumes infundados, mas também de grandes bravuras e solidariedade. 
Guiomar Belo Marques©

Ilegítima De regresso ao blog, sinto-me como regressada à Ilha Lilás, como a filha ilegítima que sou, por natureza. Ilegítima nos sítios...