Intensidade


No final de Outubro, fomos visitados por dois casais de amigos. Uma das mulheres, a Teresa, perguntou-me: "Como é que vocês saem de Lisboa e vêm viver para aqui? Não é um pouco..." A pergunta foi natural, de alguém que quer entender o porquê e se imagina a si mesma em semelhante situação, de forma que lhe completei a frase: "Assustador? Por estarmos numa pequena ilha bem no meio do Atlântico?" Ela abriu os olhos, curiosa, e disse que sim, era isso. E eu fui-me espraiando. "Estarmos aqui, assim, no meio dos elementos, numa ilha bem no centro do Atlântico e, ainda para mais, entre três falhas sísmicas. Faz confusão, não é?" Ela anuiu, com um olhar entre o perplexo e o querer muito entender, tendo em conta o que seria para ela. Confessei-lhe que, no início de aqui estarmos, de mudança feita e opção assumida, tínhamos falado muitas vezes sobre isso, os dois. Mas já há um tempo que desistíramos de o fazer. Que se tornara normal. Estamos a gostar de viver aqui, assim mesmo, entre o céu e a terra, entre três falhas sísmicas, entregues aos ditames da Natureza, insulares. Penso, agora, o que ainda não tinha clarificado para mim mesma: no fundo, ambos gostamos da surpresa que cada dia nos proporciona, sempre diferente do anterior, dessa novidade quotidianamente inesperada, da enorme intensidade de que se reveste o viver aqui. Só pode ser por isso: a intensidade.
Neste primeiro Outono, estamos a aprender a conviver com a sinceridade da Natureza. E é muito empolgante. Já nos tinham dito várias coisas. Um amigo, nascido e criado  aqui, garantira-me, perante algumas interrogações minhas, que de Inverno, "às vezes, é mesmo muito assustador". Uma amiga, que aqui viveu sete anos e se apaixonou pelo arquipélago, esclareceu-me, mais de uma vez, sempre com um sorriso na voz, penso que pela memória grata, que "quando há temporal cai tudo". "Mas tudo, como?", perguntei. "Tudo! Cai tudo. Tudo mesmo: telhas, árvores, sinais de trânsito, sei lá, cai tudo!"
Ontem, vivemos um novo entusiasmo: a chegada da Diana! 
Primeiro, pela madrugada, e sem pedir licença, chegaram as intensas rajadas diabólicas. O habitual mar dócil encorpou-se, elevou-se, revoltou-se, rugiu, perdeu o brilho e adquiriu uma cor pastosamente original. O vento, cheio de poeiras, produziu uma espécie de neblina acinzentada por toda a cidade, deixando as imensas vidraças como se não vissem água há decénios. As árvores perderam os seus luminosos verdes e outonais castanhos, para se tornarem uma mancha cinzenta e fosca. O olhar desacomodou-se, os barcos atracados pareceram enlouquecidos, as escolas não abriram, as folhas dos plátanos, de tamanhos os mais variados, voaram no alto céu, assemelhando-se a bandos de pássaros apressados, o horizonte encolerizou-se. 
A meio da tarde, o vento rodou desnorteado e, com a noite, amainou o sopro, para dar lugar às chuvas copiosas e relampejantes, durante horas a fio, como um imperativo inadiável, uma lavagem primordial, uma emergência desesperada.
Eram 8 horas da manhã quando, por fim, o dia realmente despertou, numa cidade satisfeita e tranquila, novamente transparente e cálida. ondulação abrandou, alguns barcos afoitaram-se, o mar recuperou o verde cristalino, o sol aqueceu-nos o rosto, o corpo e a existência. Voltou o som das gargalhadas das crianças.
Como se, de repente, toda a vida se refizesse. Como se a véspera apenas tivesse existido para hoje nos sentirmos especiais e felizes. Como um renascimento. Como um arfar de alegria. Como uma merecida recompensa. Como uma magia.
Guiomar Belo Marques©



Ilegítima De regresso ao blog, sinto-me como regressada à Ilha Lilás, como a filha ilegítima que sou, por natureza. Ilegítima nos sítios...