Comprar jornais do dia, aqui em Angra, tem muito que se lhe diga. Há uma "rede" de tabacarias, geralmente com especial afluência em dias de euromihões, totoloto, placard... e raspadinhas. Mas também há jornais e revistas: do Continente e da ilha. Os jornais de S. Miguel (Ponta Delgada), como o famoso Açoreano Oriental, por exemplo, não chegam aqui. Portanto, se queremos comprar um jornal lá do Continente, temos de ter a paciência de que se faz a vida do insular.
Quero eu com tudo isto explicar que os jornais viajam na Tap. A Sata não faz esse serviço: nem inter-ilhas, nem da longínqua Lisboa para cá. Portanto, se queremos ler um jornal do dia, dependemos do dia. Ou seja, se for daqueles em que a Tap vem cedinho, estamos com sorte: às duas da tarde eles batem na Tabacaria central. Se o voo for mais tardio, ou houver atraso, podemos aguardar, com a tal da paciência a que aqui nos habituamos, a eventual possibilidade de ler A Bola, dois dias depois do jogo ter acontecido.
Felizmente, à segunda, a Tap vem cedo. De forma que hoje, doidos por ler A Bola depois da goleada de ontem, o Francisco foi a correr à Tabacaria (assim mesmo chamada), por volta do meio-dia, para lhe guardarem uma, com a esperança de às duas da tarde já lá estar, não havendo atraso, é claro.
Quando voltou, meio enervado, disse-me: "Ainda bem que lá fui agora, que já têm uma data deles reservados". À uma da tarde, sem conseguir largar a ansiedade de ler o jornal, perguntou, em jeito de piada: "Ainda não são duas, pois não?"
Depois de almoço, lá foi, em pulgas, naquela lógica de a procura de A Bola poder ser tanta, que vendessem o nosso exemplar a um amigo mais antigo. Nunca se sabe... De forma que, à saída, perguntou-me: "Queres que passe por casa, para veres a capa?". A capa? A CAPA? A capa já eu tinha visto, logo pela manhã. Eu queria era ler A Bola impressa, que a on-line é uma treta, mal escrita e mal amanhada, meio vergonhosa, mesmo, para aquele que foi o jornal, então trissemanário, com o qual o meu filho mais velho treinou a sua leitura escolar, desde os sete anos de idade, por ser escrupulosamente bem escrito. Eu queria era lê-la todinha!
Quando aqui chegou, dez minutos depois, para me entregar A Bola, a primeira coisa que fiz, quase esfomeada, foi cheirá-la. Cheirei-a demoradamente, a sentir-lhe a tinta ainda fresca, o papel recém-saído da bobina, a rotativa na minha imaginação....E só depois olhei a capa da matéria, nas minhas mãos, e voltei a cheirar, quase a tremer de saudades, num esforço para, antes de a devorar, lhe fotografar a capa, a nossa capa, assim mesmo como aqui é vendida, com o preço acrescentado a lápis, com o nome do Francisco marcado da "reserva", e depois respirar fundo.
Por fim, sentei-me, a tentar acomodar-me o mais confortavelmente possível, e foi então que passei à página 2, aquela tal primeira par do miolo. E é quando espero um relato trivial, que me deparo com uma escrita fluida e inesperada. Olho, então, só então, para a assinatura do texto: António Simões. E prossigo. Continuo, surpreendida, a ler uma prosa que me comove, por me trazer de volta o Carlos Pinhão, esse jornalista notável, de escrita limpa e lúcida, de genialidade e generosidade, esse homem senhor, essa pessoa extraordinária, esse jornalista de eloquência inesquecível, esse tão saudoso camarada. E fico parada no tempo, a lembrar o Carlos Pinhão, na linha seguida, atrás de um texto dele, antigo, tão antigo quanto uns outros 10 golos. Quando Pinhão escreveu: "Aquilo não foi um desafio, foi 10 a fio..."
O texto de abertura de hoje d'A Bola (lido e fotografado HOJE! abençoada Tap, que pelo menos neste dia me trouxeste o Benfica a tempo e horas...) é, também, uma vénia ao excelente jornalismo de que era feita A Bola. O jornal mais lido em Portugal durante muitas décadas. O único que não vivia da publicidade, por as vendas (à segunda-feira, depois de um Benfica-Sporting, a tiragem chegava aos 200 mil) o pagarem a si mesmo. Que tinha 17 jornalistas fenomenais e no qual meter um anúncio mínimo de uma coluna só era possível com "boas" cunhas. Um duplo-tablóide que resistiu ao fascismo, ao formato e aos continuados, enquanto teve forças para tal, e que o meu filho mais velho lia estendido no chão da sala, de fio a pavio, em silêncio e com deleite.
Hoje, A Bola chegou a horas razoáveis. E trazia o Carlos Pinhão lá dentro. Trazia jornalismo de primeira água, portanto. Trazia a memória da nata da nata. Do tempo em que ser jornalista era uma aventura honesta, limpa, sem rasteiras, e sabia bem ler jornais. Mesmo quando o Benfica não ganhava por 10-0!
Há dias em que nos sentimos gratos por perceber que há quem recuse o esquecimento!