O Mercado
Gosto de mercados, feiras e padiolas. Gosto de me passear por entre as bancas de tralhas, legumes, cheirinhos e caracóis, peixarias, talhos, floristas e recantos de cafezinho com bolos secos. Gosto da vida dos mercados desde garotinha, quando acompanhava a minha avó nas suas idas ao de Campo de Ourique. Conheço quase todos os mercados de Lisboa, escrevi sobre eles, fiz programas de rádio sobre eles, frequento-os com o prazer e frenesim da memória olfactiva e colorida da infância.
Tenho a sorte de viver perto do Duque de Bragança, a Praça de Angra do Heroísmo. Quando lá entrei pela primeira vez, recém-chegada de Lisboa, entristeci-me. A clientela é fraca e, segundo o Hélder — o meu abastecedor de batatas, cebolas, cenouras de aspectos originais, alhos pequenitos e maiores, couves de chorar por mais, nabinhos (nabiças, para lisboeta), que se desfazem na boca, salsa (coentros raramente, que ele não gosta deste cheirinho) — "aqui as pessoas preferem ir ao hipermercado, do que vir ao Mercado. Até temos vergonha quando os turistas andam por aí... E a Câmara ainda deixou abrir mais um supermercado aqui ao pé. Isto é mesmo para acabar connosco!"
No mercado, onde vou quase quotidianamente, os vendedores conversam uns com os outros, em sistema de tristeza. A clientela é pouca. Principalmente agora, quando os elementos andam mais enfurecidos, o vento prejudica a faina e a agricultura, mais a chuva e outras adversidades desta vida de ilhéu sem costa firme por perto. Só as ilhas, entreajudando-se nos ventos e marés, na fustigada Atlântida, bem no meio de três falhas sísmicas, conseguem amparar-se umas às outras. E dia em que as peixarias não têm peixe, são dias de vazio para todos.
O Hélder explica-me tudo e pergunta-me pelo tempo. Já sabe que sou cliente assídua dos sites meteorológicos. Que pela manhãzinha, antes de ir ao mercado, verifico as inclemências, ou não, dos dias que se aproximam, e logo lhe digo se vai haver temporal, vento e chuva, ou sol e bonança. Mas ele sabe. Sabem todos muito bem. Estão constantemente a refilar pelo tempo, mas vivem aqui desde sempre. E eu também, que sei que eles sabem, vou esticando a conversa. E perguntando e aprendendo. Vou sabendo, por exemplo, que a bela cebola, "agora só lá para a Primavera". E então? Como vou fazer, Hélder? "Vai ter de comer a de estufa, mas a que aqui tenho é de S. Miguel, que quando me fornecem a do Continente, ela vem atada de outra maneira: vêm os sacos todos cozidos em cima, está a perceber?".
Não importa. Os alhos continuam bons e frescos. É ele que os semeia, embora com sementes da Graciosa. E eu vou levando umas cabeças pequeninas, que ele lá tem numa caixa, e que todos os dias me oferece, porque "como é que lhe vou cobrar esses alhos já pouco cheios?" "Alhos chochos", digo-lhe a sorrir, enquanto explico que é assim que lhes chamamos no Continente, e por isso até dizemos que quando uma pessoa também é meio vazia da cabeça é um "cabeça de alho chocho", e o Hélder ri. Acha-me piada, que fico ali uns minutos valentes a conversar com ele, quase sem clientes, mas com as melhores batatas da Terceira, que também, antes de virem as novas, lhe fui levando, tentando comprar, mas que ele me foi dando e dizendo: "só as tenho ainda aí porque a senhora as leva, porque já ninguém as quer...". E eu insisto em pagar, e ele regateia ao contrário, porque tem o seu brio.
Na sexta-feira passada, anunciou-me: "Lá para segunda-feira, conto já trazer batata nova. Nova mesmo! Não é como a da banca aqui do vizinho de trás, que pôs um letreiro a dizer batata nova, a 1€, como se fosse possível, nesta altura, haver batata nova a esse preço. Fui até lá e perguntei-lhe: então? vendes batata nova a 1€? Tu lavaste, mas foi, a batata. puseste-a branquinha e agora andas a enganar os clientes. A minha não, quando a trouxer, é mesmo nova. Eu, o que vendo aqui, é o que consumo em minha casa. Não é como um outro, que tem uma hortinha para ele e depois a horta grande é para vender, que fui lá um dia e ia apanhar-lhe na horta grande e ele disse-me que aquilo era para vender, para consumirmos, tenho ali a minha hortinha".
Assim é o Hélder. Um agricultor que tem a sua banca de cenouras estranhas mas deliciosas, me oferece aquilo que lhe parece justo e me cobra barato todos os seus prazenteiros produtos hortícolas. E ainda me ensina muito e me dá muitas informações sobre a ilha e as suas gentes, ao mesmo tempo que me faz perguntas sobre coisas do Continente, e me vai reafirmando que há pessoas que são pessoas, há outras que são mais ou menos e algumas ainda piores, que não prestam mesmo. E lá me dá uma série de exemplos, com casos concretos, para no fim me perguntar: "Então a senhora acha isto decente?", todo indignado, para logo a seguir dizer uma ironia a propósito, e desatarmos os dois a rir.
Quando vou à banca dele e ele não está, vou pondo aquilo que quero no saco e logo aparece a "vizinha", como ele designa a senhora de 80 anos e belos cabelos brancos, que tem banca ao lado da dele. Vem dizer-me que ele a encarregou de tomar conta das coisas, mas só pesa na balança dela, que com a dele não se entende. E eu lá vou até à balança dela, comprando-lhe tomate e alfaces, que são boas, e, claro, o Hélder não vende. Então ela faz as suas contas, as dele e as dela, e eu pago. Da última vez, diz-me o Hélder quando lá volto: "A senhora há dois dias esteve aqui e eu não estava, não foi?" "Sim, Hélder, mas levei e paguei na Vizinha". "Pois", diz ele. "Quero pedir-lhe desculpa, porque ela cobrou-lhe as batatas, que eu só ainda não mandei fora porque a senhora gosta delas e as leva, porque já nem as devia ter aqui..."
Assim é o Hélder, que nesta segunda-feira tinha batata nova. Quando cheguei, exultei: "Isto é que são boas notícias, Hélder!" Sorriu, percebendo, mas fingindo que não. "Então?" "As batatas, Hélder! As batatas novas!", disse-lhe, alegre, recebendo de retorno um sorriso orgulhoso do meu informador agrícola, companheiro de conversas triviais, fornecedor dos produtos da terra com que nos rebolamos de prazer à mesa, felizes pela recuperação dos sabores antigos, reencontrados em Angola e agora reglorificados.
Assim é o Hélder, que nesta segunda-feira tinha batata nova. Quando cheguei, exultei: "Isto é que são boas notícias, Hélder!" Sorriu, percebendo, mas fingindo que não. "Então?" "As batatas, Hélder! As batatas novas!", disse-lhe, alegre, recebendo de retorno um sorriso orgulhoso do meu informador agrícola, companheiro de conversas triviais, fornecedor dos produtos da terra com que nos rebolamos de prazer à mesa, felizes pela recuperação dos sabores antigos, reencontrados em Angola e agora reglorificados.
Sabe tão bem viver aqui!
Guiomar Belo Marques©